
RENDEIRAS DO NORDESTE
José Veríssimo da Costa Pereira
A VASTA extensão territorial do Brasil, a Região Nordeste não é, em rigor, uma unidade físico-geográfica interposta entre a Amazonia e o Brasil de leste, comportando variedades regionais que traiam, ou traduzam o complexo das condições climato-botânicas. É uma região geográfica complexa, dentro da qual se distinguem paisagens culturais diversas.
A partir do mar, tanto de leste para oeste, quanto de norte para o sul, as atividades econômicas diferem, no Nordeste. Os "gêneros de vida" apresentam, gradativamente, características novas; os "horizontes de trabalho" se acomodam, passo a passo, ao ciclo das secas que implantaram, no interior, o seu reinado. As diferentes correntes de povoamento que se verificaram no Nordeste seguiram, por seu turno, orientações diferentes, contribuindo destarte para diversificar, ainda mais, as áreas culturais que encerra.
Por tudo isso, é o Nordeste um verdadeiro mostruário de paisagens, de quadros, de cenas, de atividades, de costumes típicos regionais: desde o complexo paisagístico da praia, com os seus mangues, areias e coqueirais, com seus pescadores e jangadeiros, suas salinas e salineiros, até o mosaico da atividade econômica interior, embutido, de diversas peças e produtos da carnaubeira, a traduzir, em certos pontos, uma forma de civilização em torno de uma palmeira; um suceder de "feiras" e de "cercados", de "açudes" e de "coivaras", de "usinas e de "bangüês"… E em meio a tudo isso — como diria Vidal de La Blache — a manutenção, pela transmissão hereditária, de processos e invenções, que passaram a constituir, lá, qualquer coisa de metódico, assegurando a existência humana mediante a aplicação daqueles processos e invenções, num meio ingrato em que o homem atua reafirmando, cada vez mais, o seu papel de legítimo agente geográfico.
É o que sucede, entre nós, por exemplo, com as famosas rendeiras do Nordeste.
No principal centro de atividade industrial complementar, ou seja Aracati, no Ceará, mantêm as rendeiras, técnica tradicional adquirida por via portuguesa, provavelmente das antigas mestras e discípulas da região do Puí e seus arredores, autêntico foco na arte da fabricação de rendas, conhecido na França, desde o século XV.
A circunstância de se localizar, de preferência, a pequena indústria complementar das rendas no Nordeste, nas localidades banhadas pelo mar, nas que não são muito distantes da costa, e, também, nos arredores das grandes cidades do litoral, circunstância que influi, sem dúvida alguma, para formar a conhecida denominação "rendas-do-mar" ou da "praia", com que se procura a expressão: "rendas de melhor qualidade artística", parece constituir — além de outros — razoável argumento em favor do
Já D. Otília Leite Brasil, funcionária do CNG e natural do Ceará, dá-nos uma descrição sintética atual. Praticamente é possível distinguir, segundo o modo por que foram fabricadas, a "renda" de almofada, o labirinto (que no Rio de Janeiro se chama "crivo") e finalmente o fiief. Na primeira trabalha-se em almofada com bilros, — peças semelhantes a fusos, com os guais se fazem rendas — alfinetes, espinhos de cardo, mandacaru, xiguexigue etc. A renda, assim, já sai pronta da almofada. Quanto ao labirinto, notam-se o "cerzido" e o "palhetão". No "cerzido", o pano é desfiado e bordado e serve para enfeitar blusas, e vestidos, panos etc. No "palhetão", após fazer-se a malha, separadamente, borda-se, obtendo-se depois a renda. Relativamente ao íilet, faz-se a malha, como no labirinto, mas numa aspa (barbatana) que depois é bordada. Seu emprego é em toalhas, colchas, cortinas, etc.
No seu fabrico, considerando-se as diferentes zonas de produção de renda, apontam-se como linhas mais empregadas, a de novelo, a de carretel, a de algodão, de linho ou seda, do fio extraído da fibra da palmeira "tucum" (principal espécie: Asfrocaryum -vulgare, Mart. de 10 a 15 metros de altura, espalhada por todo o Brasil) e, também, fios de bananeiras (Musa paradisíaca L., com suas subespécies). O trabalho das rendeiras consiste em "trocar os bilros", sobre um saco cilíndrico, de modo a comporem o "ponto" e com este prosseguir segundo a indicação dos "furos" no "papelão". Que a indústria das rendeiras exige certa especialização, basta que se saiba que é da maneira por que é feito o papelão que decorre toda a "ciência" da renda, exigindo para tal mister "especialistas" que o "picam" ou "pinicam" segundo linguajar técnico popular. Cabe à habilidade da rendeira executar à risca, com perfeição e asseio, o modelo que lhe foi proposto.
A indústria das rendas no norte é uma indústria complementar. Por sua causa é que a vida se torna possível em muitos lares.
